domingo, 6 de março de 2016

Educaçao Infantil: Um direito que não pode ser violado



A educação infantil é duplamente protegida pela Constituição Federal de 1988 (CF/88): tanto é direito subjetivo das crianças com idade entre zero e 5 (cinco) anos (art.208, IV), como é direito dos(as) trabalhadores(as) urbanos(as) e rurais em relação a seus filhos e dependentes (art.7°, XXV) . Ou seja, a educação infantil é um exemplo vivo da indivisibilidade e interdependência que caracterizam os direitos humanos, pois reúne em um mesmo conceito vários direitos: ao desenvolvimento, à educação e ao trabalho.
Além da Constituição, o direito à educação infantil vem assegurado em outras normas nacionais, principalmente a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB (Lei n° 9.394/1996), o Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA (Lei n° 8.069/1990) e o Plano Nacional de Educação - PNE (Lei n° 10.172/2001).
A LDB organiza a educação escolar em dois grandes níveis: educação básica e educação superior. A educação infantil, segundo os artigos 29 e 30 da referida lei, é a “primeira etapa da educação básica”, sendo oferecida em creches para as crianças de zero a 3 (três) anos e em pré-escolas para as crianças de 4 (quatro) a 6 (seis) anos de idade. A diferença entre as idades máximas de permanência na educação infantil estabelecidas na LDB e na Constituição é fruto da recente modificação provocada pela Emenda Constitucional n° 53/2006, prevalecendo o texto constitucional, que reduziu o limite para 5 (cinco) anos de idade , uma vez que o ensino fundamental passou a durar 9 (nove) anos.
Essa questão relacionada à transição da educação infantil para o ensino fundamental tem gerado algumas questões que precisam ser esclarecidas. Afinal, a criança que completa 6 (seis) anos durante o ano letivo deve ser matriculada em qual etapa da educação básica? Aos 6 (seis) anos é obrigatório transferi-la para o ensino fundamental?
Primeiramente, qualquer que seja a solução a ser dada para tais questões, deve prevalecer o princípio do interesse superior da criança (CF/88, art.227 e ECA), ou seja, nenhuma medida de natureza administrativa pode limitar o exercício de seus direitos e o seu pleno desenvolvimento. Além disso, tem que ser ressaltado o princípio da permanência na escola (CF/88, art.206, I), o qual implica na garantia de continuidade dos estudos, não podendo haver vacância no atendimento escolar. Observados esses princípios fundamentais, os sistemas de ensino devem regulamentar a referida transição, de modo a assegurar que as crianças exerçam o direito à educação até o último dia do ano letivo anterior ao seu ingresso no ensino fundamental. Pode-se determinar, por exemplo, que ingressam no ensino fundamental as crianças que completem 6 (seis) anos até o dia de início das aulas, devendo as demais serem matriculadas na pré-escola.   
É dever do Estado (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) assegurar educação infantil em creches e pré-escolas a todas as crianças (CF/88, art.208, IV). Para isso, a Constituição organiza o dever de garanti-la, determinando que cabe aos municípios ofertar diretamente as vagas de educação infantil, e que aos demais entes governamentais  cabe apoiar técnica e financeiramente a criação e manutenção de vagas em creches e pré-escolas (art.30, VI, e art.211, caput e §2°). Portanto, não podem os governos federal e estaduais “lavar as mãos” em relação a esta etapa de ensino.
É importante lembrar que todos os princípios constitucionais do ensino devem ser cumpridos na educação infantil: eqüidade no acesso e na permanência, liberdade de ensinar e aprender, pluralismo de idéias e concepções pedagógicas, gratuidade, valorização dos profissionais da educação, gestão democrática e garantia de padrão de qualidade (art.206, I a VII); além dos direitos previstos na legislação específica da infância: direito de ser respeitado pelos educadores, direito à creche ou pré-escola próxima da residência e direito dos pais ou responsáveis de “ter ciência do processo pedagógico, bem como participar da definição das propostas educacionais” (Lei n° 8.069/1990, art.53, II, V e parágrafo único). 
No entanto, apesar do reconhecimento jurídico presente na Constituição desde 1988, apesar de incluída no conceito de educação básica pela LDB desde 1996 e apesar da “prioridade absoluta” que deveria ser destinada às crianças e adolescentes em todo esse período (CF/88, art.227, e ECA), o acesso à educação infantil em creches e pré-escolas está longe de se tornar realidade para grande parte da população em idade própria. Diferentemente do ensino fundamental, esta etapa foi historicamente relegada pelos administradores públicos: “Em relação à educação infantil, para crianças de zero a 6 (seis) anos,  pode-se dizer que a falta de acesso é ainda o grande foco da exclusão. Apesar do impacto da educação infantil no desenvolvimento das crianças, no Brasil menos da metade das crianças até seis anos freqüenta creche e/ou pré-escola - crianças de zero a 6 (seis) somam 23 milhões (Haddad, Sérgio. Educação e exclusão no Brasil. Ação Educativa; 2007)”.
A má interpretação do texto constitucional serviu à não implementação dessa etapa de ensino. Essa interpretação, muito utilizada pelos gestores públicos interessados em fugir à responsabilidade pelo atendimento das crianças pequenas, consistia em deturpar o sentido da expressão “ensino obrigatório”, concluindo que a educação infantil, por não ser etapa “obrigatória”, não poderia ser exigida como “obrigação” do Estado. Ora, a obrigatoriedade diz respeito somente ao caráter compulsório de matrícula e freqüência, sendo restrita no Brasil ao ensino fundamental, e não ao “dever” do Estado em ofertar o ensino, pois este dever se aplica a todos os níveis e modalidades, nos termos do art.208, caput e incisos, da Constituição. Ou seja, até os cinco anos de idade há o direito mas não há a obrigação, não são os pais ou responsáveis obrigados a procurar creches e pré-escolas, mas a partir do momento que estes procuram nasce o dever do Estado de garantir o atendimento com qualidade. Em função do princípio da proteção integral à infância, previsto no ECA, cabe ao poder público incentivar esta demanda em benefício das crianças.
Outra questão jurídica que vem atrasando a implementação do direito à educação infantil é a interpretação do § 1º do art.208 da Constituição (“O acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo.”), que induz ao equívoco (em alguns casos fruto de má-fé) de se concluir que somente o ensino fundamental configuraria direito público subjetivo. A verdade é que toda declaração constitucional de direito corresponde a uma obrigação, quando esta obrigação (dever) é apontada ao Estado trata-se de um direito público subjetivo, exigível independentemente de qualquer qualidade ou condição do sujeito. Este também é o entendimento de Luís Roberto Barroso, professor titular de direito constitucional da UERJ e da Fundação Getúlio Vargas:
A Constituição de 1988 reiterou ser a educação direito de todos e dever do Estado (art.205), e detalhou, no art.208, (...). Também aqui parece não haver dúvida quanto à imperatividade da norma e a exigibilidade do bem jurídico tutelado em ambos os casos.
É bem de ver, no entanto, que o constituinte preferiu não se sujeitar a riscos de interpretação em matéria à qual dedicou especial atenção: o ensino fundamental. Desse modo, interpretando a si mesmo, fez incluir no § 1º do art.208 a declaração de que “o acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo”. O dispositivo, todavia, não deve induzir ao equívoco de uma leitura restritiva: todas as outras situações jurídicas constitucionais que sejam redutíveis ao esquema direito individual – dever do Estado configuram, na mesma sorte, direitos públicos subjetivos. Não pretendeu o constituinte limitar outras posições jurídicas de vantagem, mas, tão-somente, ser meridianamente claro em relação a esta posição específica. (...)
O entendimento aqui sustentado parece bem claro: direito é direito e, ao ângulo subjetivo, ele designa uma específica posição jurídica. Não pode o Poder Judiciário negar-lhe a tutela, quando requerida, sob o fundamento de ser um direito não exigível. (Barroso, Luís R. O direito constitucional e a efetividade de suas normas,  2003, pp.115-116)


Não deve haver dúvida, portanto, sob pena de incoerência na interpretação constitucional, que dentro da categoria “direito público subjetivo” se inclui a educação escolar em toda sua amplitude, nos termos do art.205 e do caput e incisos do próprio art.208. Assim, por sua natureza, a educação infantil em creches e pré-escolas também é direito público subjetivo. Esse é o atual entendimento do Supremo Tribunal Federal – STF (ver abaixo seção Legislação e Jurisprudência). 

A enunciação específica em relação ao ensino obrigatório tem o objetivo de demarcar a opção por priorizá-lo no âmbito das políticas públicas, mas não afeta a integralidade e interdependência dos níveis e modalidades que compõem o direito à educação. Com a aprovação da Emenda Constitucional n° 53/2006, que institui o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação – FUNDEB, o qual, na prática, dilui a prioridade em toda a educação básica, seria coerente modificar a redação do § 1º do art.208 para “o acesso à educação básica gratuita é direito público subjetivo”.
Assim como as demais etapas e modalidades, a educação infantil pode ser exigida judicialmente pelas crianças, através de seus pais ou responsáveis legais, ou diretamente por estes. Também pode ser exigido individual ou coletivamente pelas organizações não-governamentais legalmente constituídas, pela Defensoria Pública e pelo Ministério Público. As ações aplicáveis são, principalmente, o Mandado de Segurança individual ou coletivo e a Ação Civil Pública. 

Fonte: http://www.acaoeducativa.org.br/index.php/component/content/2167?task=view